quarta-feira, 19 de maio de 2010

Lukanikos, o cão grego Anti-sistema


Encontrei esta crónica no Anovis sobre um ser vivo, canídeo, mais vivo do que um Portugal inteiro. Já o tinha visto numa ou outra notícia ou foi num vídeo de brutalidade policial?... fez-me encher o peito

Lukanikos

Se eu fosse um qualquer dos manifestantes que, na Grécia, contestam na rua as medidas impostas pelas autoridades nacionais e internacionais, é provável que sentisse vontade de me juntar àqueles que os media chamam «anarquistas» porque a violência de que fazem uso constitui uma reacção menos resignada ao inevitável e mais apropriada à raiva e frustração que todos.

Na atitude dos «anarquistas» há muitas coisas de que não gosto mas há um aspecto que me interpela, tanto pessoalmente como enquanto português: não têm medo da polícia. Ora, sinto muitas vezes que o medo da autoridade é o traço mais vil do comportamento da maioria dos portugueses, treinados na cobardia por décadas de submissão e desengano e dotados há já demasiado tempo de dirigentes sindicais ou políticos de oposição que só sabem apelar à calma e não estão mais prontos a bater-se a sério do que aqueles que deveriam encorajar.

Quando eu era novo, os meus pais tentaram ensinar-me a não ter medo da polícia. Não se tratava tanto do facto de estarmos então sob uma ditadura e de ser necessário enfrentar a autoridade. As ditaduras ficam e passam, o Estado, a sua brutalidade, não desaparece nunca. Tratava-se de uma questão mais profunda. A minha mãe contava-nos a história de Antígona, uma tragédia de Sófocles no decurso da qual Antígona desobedece às leis da sua cidade, Tebas, para sepultar o irmão Polinices que as leis tinham banido. Antígona é condenada à morte porque se firma na convicção de que as leis dos deuses, que mandam uma irmã sepultar o irmão, são mais importantes e dignas de respeito que as dos homens. Com esta história, a minha mãe dizia-nos que a lei não é um valor absoluto, que há leis iníquas, e que é preciso resistir ao Estado e à lei sempre a moral assim o exigir. Se estivermos certos da nossa confiança em leis que são anteriores à lei, não devemos temer a polícia, os tribunais, o Estado.

Da ausência de medo por parte dos gregos, o símbolo mais eloquente (tanto que se tornou um ícone nos media) é Lukanikos, um cão vadio e rafeiro que desde 2008 aparece na frente das manifestações, arreganha o dente à polícia, e bate-se ao lado dos seus companheiros humanos.

Também no que respeita aos cães, não basta à autoridade afirmar-se para ser obedecida. Tem ainda que se justificar mostrando o seu amor, não pela lei da força mas por uma lei maior, a da justiça. Ninguém deve respeito e obediência a qualquer autoridade, seja ela qual for, justificada ou não por votos, que se baseie na razão financeira para condenar milhões de homens e mulheres que já eram pores a uma vida ainda mais pobre, deixando de fora dessa condenação os mais ricos e os mais responsáveis pela desgraça colectiva. Como Antígona, os gregos têm o direito de dizer: não obedecerei a essa autoridade e a essa lei.
Lukanikos arreganha os dentes à polícia grega simbolizando a coragem da vanguarda de um povo que é capaz de colocar a lei maior, a da justiça, acima das determinações dos vendilhões de todos os templos.

(crónica de Paulo Varela Gomes, publicada no jornal Público )

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